Água Nova.
Toda a água por lá era muito barrenta. Ninguém jamais havia visto outro tipo de água além daquela água amarronzada. Todos estavam muito habituados àquela situação e ninguém questionava, nem mesmo pensava no assunto.
Naquela região, muito seca e afastada de grandes centros, havia um garoto um pouco diferente, meio estranho na visão dos moradores. ‘Ele perguntava coisas demais’, até ‘duvidava do que os mais experientes diziam’ – ‘coisas estranhas’ no dizer destes.
Bem, o fato é que, ele, de algum modo, sempre acreditou que era possível haver algum outro tipo de água; ele não sabia como ela seria exatamente, mas sabia que era possível encontrar algum tipo de água – na sua imaginação, mais limpa e clara.
Certo dia, o garoto, depois de muito brincar e passear pela região, caminhando pelos arredores da vila onde morava, encontrou um senhor, a quem nunca tinha visto; ele lembrava um monge e se vestia todo de marrom, com uma túnica como a que havia visto um dia numa foto e haviam dito a ele que era roupa de monges – pessoas que se afastavam da vida normal e se dedicavam a rezar e coisas assim.
Era um caminhante que por lá passava. O garoto viu que aquele velho senhor olhava para ele e sorria com serenidade.
Olhando para o garoto, levantou as mãos como que segurando algo, um objeto que parecia refletir raios de luz que brilhavam perante seu olhar curioso.
O garoto sentiu-se atraído e sentindo algo familiar naquele senhor se aproximou. Ele segurava um jarro de cristal e olhando para o garoto estendeu aquele jarro em direção a ele.
O garoto perguntou: o que é isto?
O senhor respondeu: é um presente para você!
O garoto apanhou o jarro e olhou dentro.
Lá estava! Algo que não sabia como poderia ser, mas lá estava: era uma água límpida e cristalina.
Depois, estando seguro de ter dado o jarro ao garoto, o senhor simplesmente levantou um braço e acenou dando adeus. E se afastou, sumindo ao longe, enquanto o garoto admirava o presente recebido.
O garoto guardou aquele presente com o maior carinho. Mas logo lhe veio a vontade de compartilhar o presente recebido com os demais moradores do local onde morava.
Logo, ele quis mostrar o que tinha ganhado, era uma água limpa e clara, algo que ninguém nunca tinha visto e, talvez, nunca imaginado. O garoto estava muito contente. Logo foi convidado a mostrar o seu presente aos senhores mais influentes do local.
O que viria a seguir se constituiria numa grande surpresa para ele. De início, não entendeu o que estava acontecendo. Ao mostrar a nova água às pessoas, ouvia delas a afirmativa: não, isso não é possível, é uma ilusão, e assim foi.
E cada um a quem ele mostrava aquela água límpida, como que querendo reforçar o que diziam, jogava um pouquinho de terra naquela água, dizendo algo tipo: vamos ver como ela fica. E assim foi, em pouco tempo a água que era límpida e cristalina logo estava turva e barrenta, como aquela que todos conheciam.
O garoto nunca entendeu o porquê daqueles senhores fazerem aquilo, não acreditarem naquela nova água que mostrara a eles, e o quanto especial ela era e; ‘além de não concordarem, ainda jogavam um pouco de terra nela’, sujando algo ‘só para provar que não existia algo melhor do que aquilo a que estavam acostumados’; assim ele via o que havia ocorrido.
Assim, o tempo passou. O garoto, que nunca deixara aquela região, envelheceu; mas continuara sempre a acreditar naquela água. Oras! Chegou a tê-la nas mãos por um tempo. Se acreditava antes de ver, imagine depois de tê-la em mãos!
O garoto envelheceu e um dia, numa de suas solitárias caminhadas ao redor da vila em que morava, dentre as poucas árvores e terras secas que se viam ao longe, parou com espanto: lá estava o mesmo senhor que um dia lhe dera a água. Ele sorria, como da outra vez! Desta vez, ele parecia brilhar um pouco mais.
O agora envelhecido garoto se dirigiu na direção do velho senhor e, como que querendo se desculpar – Oras! Havia perdido o tesouro que havia recebido há tanto tempo, ia começar a falar, quando o senhor, apenas sorrindo colocou o dedo indicador entre os lábios, fazendo sinal de silêncio.
E disse ao outrora garoto: ‘você acreditava em algo e aquilo veio a você’. Fez uma pausa de segundos que pareceu uma eternidade e continuou, ‘quando você acredita você encontra. As pessoas não acreditavam e não queriam acreditar. Elas não estavam prontas, e assim, o mais fácil para elas era negar o que estava na frente delas, e para reforçar o que acreditavam, jogavam terra na água cristalina até terem transformado algo novo em algo parecido com o que podiam conviver.’
O antigo garoto, agora um adulto, observava aquele senhor e apenas ouvia.
‘Acreditar naquilo que não é visível aos olhos é um ato especial na vida!’ “Muitas pessoas são chamadas, mas poucas as escolhidas”, disse um dia o mestre a quem dedico minha vida.
É como um presente que é dado a todos os seres humanos, mas poucos o aceitam. Você sabe, continuou o velho senhor: aqueles que aceitam são os poucos que encontram os tesouros, e sabe o porquê disto?
O garoto o olhava, sabendo que não tinha a resposta.
O senhor continuava: Há muitos tesouros guardados, mas sabe onde eles estão?
Eles estão guardados em nossas consciências, e, de quando em quando, eles se mostram nos sonhos e nos ideais das pessoas. Quando as pessoas percebem aqueles ‘presentes’ elas despertam tesouros em suas vidas. De tempos em tempos alguns destes presentes são dados diretamente às pessoas, como no seu caso, mas isso não é o mais comum, o normal é que elas tenham que descobrí-los. E então, aqueles que os encontram sentem que a beleza da vida é muito, mas muito mais maravilhosa do que podem imaginar os que só crêem naquilo que conseguem entender em seus vãos raciocínios. Não importa se ninguém mais acreditou, a ‘luz’ que brilha em quem acredita é que faz a diferença. Essa ‘luz’ fala às almas das pessoas e ali deixam alguns ‘reflexos’ que nunca se apagam. É assim que acontece.’ Essa luz habita a natureza; ela estava naquela água límpida e brilhante que você teve em mãos. A vida tem essa luz. Apenas temos que cuidar de não apagá-la.
O ex-garoto experimentava uma mistura de alegria e tristeza – ele não saberia definir o que sentia, só sabia que ‘aquele sorriso tranqüilo’ daquele senhor ficara gravado em sua mente e sentia-se preenchido de muitos reflexos luminosos dentro de si. Sabia que o que acreditava quando criança, mesmo quando ‘sem evidências’ era tão verdadeiro como quando teve aquela água em suas mãos. Seu sentimento era de gratidão.
Passado alguns minutos, ele viu o senhor se afastando e logo sumir ao longe.
Não muito tempo depois, aquele garoto de antigamente, estranho e muito perguntador faleceu. Alguns se lembravam de suas manias e questionamentos, outros haviam dele se afastado. A água do local, por sinal, estava ainda mais barrenta que em seus tempos de criança. Mas sim, enquanto ele viveu, sempre expressou uma ponta sorriso e, de tempos em tempos, deixava os ‘reflexos’, que brilhavam dentro de si, pular para fora e então falava às crianças e a raros transeuntes que por ali passavam, falava da esperança, da importância em acreditar e, de tempos em tempos, da água límpida e cristalina que um dia acreditava, ainda iria fazer parte da vida de todos. Assim foi a vida dele. O quanto os ‘reflexos’ que compartilhou com aquelas crianças iriam se acender na vida delas ele não sabia, mas isso não importava, pois sabia que ‘reflexos’ se manifestam quando a luz brilha na alma e, no devido tempo, eles se manifestariam.
Texto de Herbert Santos Silva, escrito nos tempos da revista Presença, na Faculdade de Engenharia, em Itajubá, Mg.
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